SOCIEDADE

25/08/2007 - 03:40 | Edição nº 484

A vida de João Teixeira de Faria, conhecido como João de Deus - ou John of God -, o cirurgião espiritual de Goiás que é mais famoso fora que dentro do Brasil

Marcelo Zorzanelli (texto) e Ricardo B. Labastier (fotos), de Abadiânia, GO


ESPECIAIS

CELEBRIDADE
João de Deus, na casa onde atende milhares de pacientes por ano. A maioria são estrangeiros

São 5 da tarde na cidade de Abadiânia, interior de Goiás, a 115 quilômetros de Brasília. O cheiro dos tijolos cozidos na pequena olaria passeia pelo ar de agosto, um dos mais secos do ano no Cerrado. A poeira vermelha não adere ao chão e se espalha sobre telhados, paredes e ruas. As poucas árvores são retorcidas e nanicas, nada imponentes sobre a grama desidratada. Do outro lado da rua, um complexo de prédios conhecido como Casa de Dom Inácio de Loyola se destaca na paisagem poeirenta pela impecável limpeza. O pó não se assenta porque todas as quartas, quintas e sextas-feiras, no fim da tarde, litros de água são despejados por todos os lados, enquanto homens e mulheres vestidos de branco empurram vigorosamente rodos no chão de cimento batido.

O furioso mutirão de limpeza é o último ritual de um dia comum na “Casa”, como é conhecido o lugar. Encerra um expediente que começa às 8 da manhã e que atrai 800 pessoas a Abadiânia. Na maioria estrangeiros, eles vêm em busca das cirurgias espirituais, visíveis e invisíveis, efetuadas por um fazendeiro conhecido como João de Deus, o mesmo epíteto que o papa João Paulo II recebeu em sua primeira visita ao Brasil, em 1980. Neste caso, o João que atrai multidões – diz já ter atendido 10 milhões de pessoas, o que exigiria receber mais de 500 por dia, todos os dias, durante 50 anos – se chama João Texeira de Faria. Já foi tema de uma reportagem da TV americana ABC, em 2005, e é o protagonista de um documentário do canal Discovery, a ser exibido internacionalmente (no Brasil, vai ao ar nos dias 25 e 29 de agosto, às 22 horas).

João estremece, como se uma corrente elétrica passasse pelo corpo. Diz que agora está ali o “doutor José Valdivino”

Na internet, há uma profusão de sites em que pacientes relatam curas milagrosas. Na Casa, um cômodo abarrotado de ex-votos oferecidos por pessoas que se dizem curadas – muletas, braços e pernas de cera, cadeiras de rodas, óculos, reproduções de arcadas dentárias e uma coleção de tecidos humanos conservados em formol – é um testemunho da multidão que já foi atendida ali. João de Deus chega à Casa cedo, por volta das 7h30 da manhã, e senta-se num sofá do pequeno escritório anexo aos salões principais. Nas paredes, imagens de santos, retratos de gente atendida por ele, uma foto sua ao lado do médium mineiro Chico Xavier, diplomas de honra ao mérito emitidos por associações militares, entidades policiais e Câmaras de Vereadores. As paredes brancas com rodapé azul de 1 metro de altura, onipresentes na Casa, formam um corredor claustrofóbico que leva ao salão principal, onde cerca de 300 pessoas de todas as idades estão sentadas, de olhos fechados e em silêncio.

SOB RECEITA
João de Deus prescreve, em grande parte dos atendimentos, um preparado à base de raízes e ervas, vendido na Casa por R$ 10 o pote

João não ergue a vista para quem o espera. Ele está descalço e navega em passos incertos até uma cadeira de espaldar alto. A seu redor, uma dúzia de buquês de flores frescas, estátuas de santos e uma pedra de quartzo que serve de gruta para uma Pietà. Ele chama dois de seus assistentes e dá uma mão a cada um. Estremece, revira os olhos, sacode os ombros e retesa os braços, que deixa cair, como se uma corrente elétrica passasse por seu corpo. Ele se recompõe. Até as 5 da tarde, estará em transe, atendendo as centenas de pessoas que formam uma fila em frente a sua cadeira. Seu ar normalmente contrito dá lugar a movimentos amplos dos braços e uma genuína hiperatividade. De acordo com ele, quem está ali agora é o “doutor José Valdivino”, uma das 30 entidades que João afirma usar seu corpo como “aparelho” – designação da literatura espírita – para curar pessoas. Entre as supostas entidades estão figuras históricas como o sanitarista Oswaldo Cruz, Santo Inácio de Loyola e Santa Rita de Cássia.

Entre os que o procuram estão pacientes de câncer, esclerose, paralisia cerebral, bócio, nódulos mamários, cefaléia, vertigem, dor abdominal, lombalgia, problemas oculares, aids. João diz não prometer curas, que segundo ele dependem “da vontade de Deus”. Na ante-sala onde se forma a fila, são exibidos vídeos com testemunhos de curas milagrosas. Uma equipe de auxiliares informa os que esperam atendimento quanto aos primeiros passos: vestir-se de branco para “facilitar o acesso à aura”, que tipo de comida evitar. Em seguida, vão todos para a fila. Uma jovem americana, de olhos fechados, medita com uma foto do presidente George W. Bush nas mãos. “Concentrem-se nas suas doenças,” diz uma auxiliar de João. “Os espíritos estão examinando vocês, e farão um relatório para facilitar o atendimento.”

A CIRURGIA
O médium raspa a córnea de um paciente com uma faca de mesa, sem assepsia nem anestesia. O doente não sente dor

As cirurgias podem ser “visíveis” ou não, de acordo com a vontade do paciente. Nas visíveis, os procedimentos mais comuns são a introdução de uma pinça cirúrgica no nariz, a raspagem da retina ou a retirada de tumores com bisturi. Às vezes, João faz simples massagens na região onde o paciente reclama de dor. O médium pergunta, imperativo: “Cadê a dor?” Todos dizem não sentir mais nada. Em alguns casos, ele ordena a pessoas em cadeiras de rodas ou muletas que as abandonem e andem. Em todos os casos presenciados pela reportagem de ÉPOCA, os pacientes saíram claudicando com muita dificuldade. Quando há cortes, ele costura a ferida com agulha e linha, e o paciente vai para uma sala de repouso. Se há sangue no chão, os auxiliares se apressam em limpá-lo com álcool de cozinha. Os instrumentos cirúrgicos não são limpos entre uma operação e outra.

Uma consulta sem cirurgia é mais rápida. João rabisca um papel, que é seu “receituário”, um garrancho ilegível. Seus auxiliares o traduzem. A prescrição é sempre o mesmo preparado de raízes e ervas ou um apontamento para uma cirurgia posterior. Quem passou por uma cirurgia espiritual é orientado a ficar 24 horas em repouso. A Casa também pede que não se interrompa o tratamento médico. A maioria das pessoas em busca de cura acaba ficando mais que uma semana em Abadiânia, a pedido das “entidades”. Ela também é incitada a permanecer na Casa durante vários dias, para uma “corrente de meditação”.

LONGA VIAGEM
O casal Alice e Walter Reschl, da Áustria, levou o filho mais velho a Abadiânia para tratar de uma distrofia muscular

Em uma das paredes da Casa há uma reprodução de um estudo publicado em 2000 na Revista da Associação Médica Brasileira. O trabalho é, supostamente, uma tentativa de investigar cientificamente as cirurgias espirituais de João de Deus. Um de seus autores, Alexander Moreira de Almeida, hoje é professor de Psiquiatria na Universidade Federal de Juiz de Fora. Ele já escreveu artigos em outras publicações com títulos como “Visões espíritas dos distúrbios mentais no Brasil” e “A mediunidade vista por alguns pioneiros da área mental”. O estudo de 2000 não chegou a conclusão nenhuma. Uma das co-autoras, Maria Ângela Gollner, se diz constrangida pelo uso do artigo. “Ele fez daquilo uma máquina de propaganda”, disse, referindo-se a João de Deus. Ouvido por ÉPOCA, Almeida não quis revelar sua crença religiosa e disse ignorar que o artigo esteja afixado na Casa Dom Inácio.

Dez cirurgias de João de Deus foram acompanhadas, mas apenas seis pacientes foram entrevistados e quatro foram localizados seis meses depois da cirurgia – em nenhum caso foi obtido o histórico médico dos pacientes. Esse artigo inconclusivo, porém, costuma ser usado como uma espécie de “respaldo científico” para o trabalho de João de Deus. Outro argumento são entrevistas de médicos americanos. Mehmet Oz, um cirurgião conhecido nos Estados Unidos – colabora com o programa de Oprah Winfrey –, se disse impressionado com as imagens das cirurgias. “Eu gostaria de ter o tipo de treinamento que permite a ele transformar s o próprio corpo num mecanismo de cura”, disse à TV americana ABC.

OUTROS SITES
PUBLICIDADE