Vivemos num mundo consciente como nunca antes das vastas extensões do cosmos, da imensa variedade das espécies na terra, e das relações entre entidades a todos os níveis. Vivemos num mundo urbano e industrial que é dominado pela ciência e pela rápida troca de informação.
Contudo, as principais religiões que dominam o mundo de hoje desenvolveram-se no seio de povos de agricultores e pastores, em épocas em que a superstição prevalecia à ciência. Épocas em que se pensava que o sol orbitava à volta da terra e que as estrelas eram orifícios num "tecto".
Esta contradição produz uma incongruência na mente de cada crente. Existe uma área quotidiana das nossas vidas durante a qual somos astutos como raposas, investigando, experimentando e continuamente encontrando soluções, conduzidos pela razão, pela evidência e pelo pragmatismo.
E há, nas nossas vidas, uma área religiosa da qual são banidas a razão e a evidência. Uma área na qual somos ingénuos como crianças. Durante a qual acreditamos em coisas que desafiam a experiência e a ciência - milagres, ressurreições, vozes divinas ou angélicas, salvadores vindos do céu. Uma área em que algumas pessoas parecem prontas a acreditar em quase tudo (veja Fé). Esta área religiosa é de central importância para a parte emocional das nossas vidas. Tutela as mais importantes transições da vida, desde o nascimento, passando pela adolescência, até ao casamento, paternidade, e morte. Governa as nossas expectativas a respeito da morte e da vida para além da morte.
A incongruência entre razão e religião é perigosa para a nossa integridade mental. A área religiosa ajuda a encobrir ou a incubar outros tipos de irracionalidade, políticos ou raciais, e demais recusas em confrontar a realidade e a evidência. Agarramo-nos intensamente às nossas crenças religiosas. Contudo, devido a que grande parte delas é de facto pouco credível frente à nossa mente pragmática, somos muito sensíveis no que a elas respeita, defensivos e agressivos. Condenamos os descrentes ao inferno após a morte - ou pior, condenamo-los ao inferno antes da morte, através de perseguição, discriminação ou confronto massivo.
Devemos ultrapassar este embate entre o nosso ego racional e o nosso ego irracional. Então porque não simplesmente abandonar a religião em favor da ciência?
Porque a ciência por si só não consegue satisfazer as nossas necessidades mais profundas.
Num mundo urbano, em que o isolamento é tão comum, precisamos de acreditar em alguma coisa que seja maior que nós próprios. Alguma coisa menos divisiva que a nossa identidade étnica ou nacional. Alguma coisa mais englobante que os nossos fragmentados bairros. Alguma coisa mais perdurante que o nosso frenético mercado global.
Precisamos de uma fonte de valores e de significado na vida. A ciência explica coisas - mas não pode atribuir-lhes valor nem significado. É certo que alguns cientistas divulgam as suas explicações - especialmente sobre a vida e a mente - de modo a diminuir valor ou significado. Contudo as pessoas não se conformam a ser reduzidas a meros mecanismos, ou a escravos de genes cegamente egoístas.
Precisamos de um mais profundo suporte para os nossos sistemas morais. A ciência trabalha com factos, não com éticas. Muitos filósofos tentaram divisar sistemas éticos baseados num altruísta interesse próprio. Mas se a regra é o interesse próprio, então o interesse próprio egoísta será sempre poderoso.
Caso único entre os animais, os humanos são amaldiçoados com a consciência da sua morte. Precisamos de ter esperança de viver além da nossa morte. A ciência nada nos pode dizer relativamente à vida depois da morte.
Precisamos de procurar alguma maneira de satisfazer estas profundas necessidades a que as religiões tentam dar resposta. Contudo, ao mesmo tempo devemos manter todo o rigor da aproximação científica. Nunca devemos divorciar-nos da razão; nem da evidência. Nunca devemos perder de vista o mundo real da experiência (Veja Que há de científico no panteísmo científico?)
Na forma em que é proposto, o panteísmo científico comporta duas convicções básicas:
A terra é sagrada.
Não nos referimos aqui a entidades espirituais capazes de pensar ou de sentir. Referimo-nos ao cosmos e à terra conforme existem, constituídos por matéria. Tudo o que existe é matéria ou energia numa ou noutra forma. Nada pode existir se não for matéria ou energia.
Quando dizemos que os cosmos é divino, fazemo-lo exactamente com a mesma convicção e emoção com que os crentes dizem que o seu deus é Deus. Mas não estamos a fazer uma afirmação metafísica que esteja isenta de ser provada ou negada. Fazemos uma afirmação ética que significa nem mais nem menos que isto: Nós devemos relacionar-nos com o universo da mesma forma que os crentes em Deus se relacionam com Deus. Ou seja, com humildade, êxtase, reverência, celebração e a busca de uma mais profunda compreensão.
Quando dizemos que a terra é sagrada, fazemo-lo exactamente com a mesma dedicação e reverência com que os crentes falam acerca da sua igreja ou mesquita, ou das relíquias dos seus santos. Mas não estamos a fazer uma afirmação acerca do sobrenatural. Dizemos que devemos tratar a natureza da mesma forma que os crentes tratam dos seus tempos e santuários, como local sagrado - local a ser reverenciado e preservado em toda a sua glória.
As religiões dominantes descrevem os seus deuses de várias maneiras: misteriosos, extasiantes, todo-poderosos, omnipresentes, transcendentais, infinitos, eternos. Estas descrições não são arbitrárias, nem são simples projecções de características humanas. Os atributos divinos baseiam-se nas verdadeiras propriedades do universo (veja Os verdadeiros atributos divinos.)
Quando os teístas veneram deuses, sem o saber eles adoram o cosmos. Mas esta veneração diferida não funciona como um canal para o universo ou para a natureza. Pelo contrário, separa. Desvia a atenção das pessoas da real divindade que está à frente dos olhos, para uma divindade imaginária que existe nas suas cabeças.
O panteísmo científico não implica nenhum conflito com a ciência nem com o pragmatismo. Tão pouco exige que delimitemos uma área das nossas vidas da qual a ciência esteja banida.
Ao invés fortalece a ciência, dotando-a de uma fundação religiosa. A ciência torna-se parte da cruzada religiosa: a perseguição de uma mais profunda compreensão da Realidade da qual todos fazemos parte, de mais profundo conhecimento da natureza e do ambiente, de forma a melhor podermos preservar a abundante diversidade natural.
E a ciência fortalece a religião, exactamente o que se pensava que a teologia medieval fazia. As descobertas científicas sublinham constantemente a complexidade, a espetacularidade, o mistério de Ser. Nunca podem miná-las, porque o derradeiro mistério da existência, o insustentável êxtase da sua presença mantém-se impenetrável e assim continuará.
Empirismo - abertura à nova evidência, a toda a evidência, ouvir - torna-se não apenas uma ferramenta essencial de investigação, mas um dever sagrado em todos os aspectos da vida, da ciência passando pela política até à vida doméstica (veja Que há de científico no panteísmo científico?)
Se o Real é divino, então a divergência do real é um crime similar à blasfémia.
Se a natureza é o único paraíso, então a separação da natureza é o único inferno. Quando destruímos a natureza, criamos um inferno na terra para as outras espécies e para nós próprios.
A estética baseia-se na estrutura física dos nossos cérebros e órgãos dos sentidos. Estes, por sua vez, baseiam-se na estrutura da matéria.
Existe uma ressonância entre a forma do universo físico, ou da natureza, e as nossas faculdades estéticas. Esta ressonância baseia-se na unidade do ser e do mundo: somos feitos da mesma massa do cosmos, seguimos os mesmos padrões que o resto da natureza. Reagimos às formas naturais porque fazemos parte da natureza. Reagimos às formas físicas como as destas páginas porque fazemos parte do universo material.
Assim a estética é a resposta intelecto-sensorial à divindade de Ser - do mesmo modo que a religião é a resposta ético-emocional e a ciência é a resposta cognitiva. Esta percepção devia suscitar um novo estímulo e uma nova raison-d'être à arte, para que a arte se possa libertar do beco-sem-saída para dentro do qual rastejou.
Nenhum tipo de arte humana consegue criar imagens tão fantásticas nem tão gratificantes como as que contemplamos todos os dias, ou as que vemos à escala cósmica ou microcósmica através dos telescópios ou microscópios.
Já é tempo da arte deixar de se focar no seu próprio umbigo, ou nas opiniões dos críticos, galerias e académicos, e passar a focar-se na celebração do divino cosmos e da sagrada terra.
A experiência mística tem certas características comuns nas religiões. No seu cerne está a experiência de ir além do ser e da unidade com a divindade. Contudo, diz-se frequentemente que a experiência é difícil de atingir e de conservar.
A união mística é acessível através do panteísmo científico. De facto é mais acessível que sob outras religiões, porque o processo não depende da imaginação ou disposição. É simples de compreender, aberta a todos, e repetível.
Pode atingir-se sob um céu limpo cheio de estrelas e de galáxias, ou ao pé de uma orla florestal. Pode experimentar-se junto de um lago crestado pelo vento, ou em frente de uma vela acesa. Pode sentir-se enquanto se segura um seixo de granito ou um pedaço de casca de árvore.
A união mística com a realidade consiste num total abandono da consciência à experiência sensorial da realidade material. O ser torna-se simplesmente o veículo para a autoconsciência da realidade. O ser é transcendido, e re-unido com o todo do qual ele é parte.
Esta experiência pode conseguir-se a qualquer momento, por qualquer um. Não exige nenhum treino árduo, e nunca deixa ficar aquele sentimento de pobreza e de marginalização que tantos místicos sentem quando perdem a `conexão´ com o Deus imaginário dentro das suas cabeças.
Todas as religiões funcionam como suporte de sistemas éticos, frequentemente sob a ameaça do inferno, ou a promessa do céu. Elas acolhem o bem, não pelo seu valor, mas na esperança de recompensa ou de evitar penalizações.
O panteísmo científico começa como uma ontologia - uma afirmação a propósito de Ser. Contudo, conduz a uma ética e a uma política. A ética baseia-se na premissa o principal bem na vida humana consiste em ligar-se com o cosmos, com a natureza e com outros humanos. Tudo o que aprofunda essa conexão em cada um e nos outros, é bom. Tudo o que a prejudique, é mau.
Certas emoções fortes são obstáculos à conexão. Entre estas, a mais proeminente é a ansiedade. Origens da ansiedade são a insegurança ou a exposição ao perigo - insegurança emocional, devida à ausência ou perda de amor; insegurança económica, devida a pobreza e devida a perda de meios; insegurança física, devida a doença, desastre, catástrofe ambiental ou violência. De diferentes maneiras, animosidade obsessiva e inveja podem também tornar impossível a conexão com o cosmos.
Conexão significa encontrar maneiras de controlar estas emoções em si próprio, e promover condições que minimizem os seus efeitos nos outros: famílias estáveis que nutram o amor e comunidades devotadas; o fim da pobreza; distribuição equitativa de rendimentos e trabalho; e a pacífica resolução das disputas através de verdadeira democracia e efectiva participação.
A conexão tem implicações ambientais para além de
prevenir as ameaças ambientais. Ela Solicita o livre acesso para
todos
às áreas naturais com uma grande diversidade de
espécies.
Isto promove, o mais possível, a preservação dos habitats
naturais. Significa a recriação de áreas naturais em
cidades
ou bairros delas desprovidos.
Ela significa a preservação do máximo da biodiversidade -
a riqueza das espécies. Ela significa a
preservação das espécies não apenas contra a
extinção total, mas preservá-las ou reabilitá-las
no seio do maior número de habitats possível, de forma que
o maior número de pessoas delas possam desfrutar. Saber que os
pintarroxos ainda existem algures de pouco serve, se eu nunca os ouço
nos campos próximos de onde vivo.
A conexão solicita fácil acesso ao cosmos. À medida que o mundo se urbaniza, a radiancia do céu nocturno mistura-se com a luz irradiada para cima proveniente da iluminação pública não deflectida. Necessitamos de campanhas que ponham fim à poluição luminosa dos nossos céus nocturnos, para que possamos vê-los de novo em todo o seu esplendor. Necessitamos de um aumento massivo no número de grandes telescópios, com livre acesso ao público.
A conexão significa a maximização da nossa interacção com o Real. Desde que a escrita foi inventada, os humanos perderam a maior parte do seu tempo confinados ao mundo das suas línguas e sistemas simbólicos, o que frequentemente mascara o mundo real e nos separa dele. Temos de aprender a reduzir o tempo que perdemos navegando em mundos irreais, para que tenhamos mais tempo para experimentar o mundo real. Nem ficção, nem drama, nem arte, nem a música se comparam à intensidade do mundo real se a ele estivermos completamente receptivos.
Devemos criticar aquelas crenças que dificultam a conexão. Incluindo as crenças reducionistas num mundo material vazio de significado ou valor. Incluindo também as crenças num Deus apartado do mundo presente, crenças numa vida depois da morte melhor que a presente. Contudo, porque as crenças religiosas são fervorosamente tidas, devemos criticar de forma não ofensiva, começando por apontar as características comuns.
Acreditar num paraíso não serve os nossos esforços para preservar este mundo. Se o paraíso existe, então há sempre um outro, melhor mundo à nossa espera, mesmo que destruamos completamente a terra.
Acreditar num apocalíptico fim do mundo, comum ao Cristianismo e Islamismo, tem efeitos ainda mais perigosos. Se o próprio Deus um dia enrolará os céus como um pergaminho e fará chover fogo na terra, então porque temos de lutar para a preservar?
Ainda assim muitos de nós sentimos a necessidade de acreditar na sobrevivência à morte. Temos de encontrar uma solução empírica, que seja compatível com a evidência. A evidência aponta para que os nossos corpos e mentes não sobrevivem à morte. Os testemunhos de pessoas que acordaram de períodos de morte aparente não constitui evidência, já que nenhuma delas morreu realmente.
Então que sobrevivência podemos esperar? A resposta é `imortalidade mortal´ - sobrevivência através das obras e memórias que deixamos no mundo real.
Primeiro, descendência. A maior parte das pessoas deixa cá filhos e netos, que transmitem o seu material genético. Porque esta herança está escondida, deve ser reforçada com livros de linhagem, ocupações e locais de residência tão antigos quanto possível. Linhas genealógicas presentes com o passado e futuro, fazendo do tempo uma narração e não apenas uma sucessão de momentos isolados. A linhagem relaciona, em última análise, todos os humanos a um grupo ancestral comum. Pode até relacionar todos os seres vivos da terra a uma anterior espécie que os originou.
Segundo, recordação. A maior parte das pessoas é lembrada após a sua morte. A frequência e grau de afeição com que são lembrados depende do seu altruísmo para com os outros. Estas recordações deviam ser entrosadas na tradição, como acontece no este e sudeste asiático. Uma vez por ano, no aniversário da morte ou do nascimento de cada pessoa, os seus descendentes devem contemplar uma sua imagem e celebrar a sua memória.
Terceiro herança - o legado de valiosas posses relacionadas com a memória da pessoa: a bengala favorita, um trofeu desportivo escolar, um fóssil coleccionado.
Quarto, feitos. As boas acções e obras de uma pessoa vivem para além dela, em alguns casos por muito tempo. Quanto maior o feito, tanto maior a sobrevivência. Alguns dos maiores criminosos e egoístas da história - pessoas que destruíram milhões de vidas em nome de conquistas ou de ideologias - são também lembrados. É importante que o ensino da história distinga mais cuidadosamente o bem do mal, e denuncie a memória dos "grandes" conquistadores.
Estas formas de `real vida depois da morte´ resultam num tipo de sobrevivência que satisfará a maior parte das pessoas. Quase de certeza elas estimularão uma maior bondade e consideração, efectivos esforços em melhorar o mundo e na preservação da natureza, do que a expectativa do paraíso. O Deus do Cristianismo pode perdoar uma vida inteira de destrutivo egoísmo mesmo no leito da morte. O tribunal dos descendentes, e do mundo natural, não o fará.
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